sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Na escuridão da gaveta, meu coração.

Entre um telefonema e uma fila no banco, às vezes penso em Genalva, minha melhor amiga quando criança. Era de pano, podia nem ser tão bonita quanto a Emília, mas eu a amava assim mesmo.

Há muitos anos não vejo Genalva. Naquela época, passávamos todo o tempo juntas de um lado para o outro. Sempre companheira, na alegria, na tristeza, na saúde, na doença e, até nas broncas que vez em quando levávamos de minha mãe.

Certa vez, na cozinha de mamãe, tornávamos cozinheiras e, com a habilidade de uma menina de nove anos, preparávamos o jantar para meu marido que estava para chegar do trabalho. Colocamos todos os ingredientes na panela e ligamos o fogão. Subi numa cadeira para mexer a gororoba no instante em que mamãe entrou subitamente na cozinha. Com o susto, Genalva caiu dentro da panela. Genalva tirou umas férias na lavanderia e eu, trancada no meu quarto.

Depois disso, continuamos ainda mais inseparáveis. Até o dia em que a crueldade da pré-adolescência e dos hormônios forçou nossa desunião. Aos poucos fui conhecendo o mundo real e, como tudo que era novidade, eu estava adorando. Novas descobertas, transformações, sentimentos.

Lembro do dia em que a deixei guardada no fundo da ultima gaveta da minha cômoda. Nesse dia, tinha entrado um garoto novo na escola. Quando nossos olhos se encontraram, me senti estranha, um frio na barriga, o coração bateu rápido e meu rosto começou a queimar. Desse dia em diante, resolvi crescer e deixei de brincar de boneca, para brincar de mocinha, de mulher, de fêmea, de mãe, de esposa.

Da noite para o dia, Genalva deixou de existir na minha vida, sem mais nem menos. Tirei-a de um mundo de sonhos para deixá-la na escuridão eterna da minha gaveta. Não pedi perdão à Genalva, sei que seria em vão. Ela nunca me perdoaria, com toda a razão.

Sinto sua falta. Principalmente, nas noites frias em que meu marido está viajando. Sinto sua falta. Quando os carros insistem em me prender no caminho do trabalho. Sinto sua falta. Quando minha filha tem um pesadelo e vem correndo até meu quarto buscando a minha proteção. Sinto sua falta.

Genalva, mesmo trancafiada na gaveta, me faz bem. E, se existir um lugar aonde as bonecas de pano vão depois que são abandonadas por meninas bobas e tímidas, eu sei que ela está me vendo de lá, com seus olhos de botão cheios de expressão.

O telefone tocou de novo. Por favor, Genalva, vem me buscar que eu estou odiando esse maldito mundo real.

Escrito para o concurso literário da revista Piauí.